Pensamentos randômicos sobre Severance (série, 2022)
Terminei recentemente a primeira temporada de Severance, série de 2022 da Apple, localizada no Brasil como Ruptura. Foi uma experiência bem mais pesada filosoficamente do que eu esperava e, logicamente, tenho um monte de considerações sobre o que assisti. Mas ao mesmo tempo tenho preguiça de fazer uma crítica elaborada e coesa, então vou só escrever alguns pensamentos soltos que tive enquanto assistia.
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A existência dos Internos é apenas uma extrapolação da "ética de trabalho" que se espera do proletariado contemporâneo, de total comprometimento com o trabalho. Para os Internos nada existe além do trabalho. Não uma família ou amigos do lado de fora os esperando, não há eventos políticos e sociais para se preocuparem, não há sequer hobbies que eles aguardam todo o dia poderem se dedicar assim que saírem do trabalho. O escritório é tudo o que eles conhecem, seus colegas de trabalho as únicas pessoas com que se comunicam e o trabalho a única coisa que podem fazer.
Sabe aquele "empreendedor" good vibes que adora um palco e se popularizou graças à internet? Você deve saber do que estou falando. Aquele chefe sem noção que fala que você, empregado, deve "vestir a camisa" da empresa. Os funcionários rupturados da Lumon são os sonhos molhados desse tipo de pessoa.
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Os Internos são propriedade da Lumon. Há literalmente uma patente por trás da existência deles: a tecnologia da ruptura é legalmente da empresa, seu funcionamento sendo um segredo industrial que leva até à profanação de corpos para sua proteção. Mais do que isso, como a ruptura é geograficamente baseada, os Internos só existem quando dentro da empresa. Eles são uma propriedade dentro de uma propriedade, e quando fora do território da empresa, eles deixam de existir. Mark chega a dizer explicitamente que ser demitido ou desligado da empresa seria, efetivamente, uma espécie de morte. Os Internos representam o próximo passo da exploração capitalista: o proletário não vende mais sua força de trabalho, e sim sua literal existência.
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Ainda nessa vibe de extrapolação da existência do proletariado sob o capitalismo, a alienação do trabalho dentro da Lumon é absoluta. Mais interessante, ela se aplica aos Externos e Internos. A princípio pode parecer que apenas os Externos, pela natureza do próprio processo de ruptura, estariam completamente alheios ao que fazem dentro da empresa. Mas nem os Internos têm a mínima ideia do que fazem lá dentro. Eles parecem ter transcendido o conceito de bullshit job: em vez de fazerem um trabalho sem sentido que fingem ser importante para conseguir um salário, eles fazem um trabalho em que o sentido é por design incognoscível mas, paradoxalmente, é a única coisa que permite a própria existência dos empregados.
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De maneira nada sutil a série trata a Lumon, sua ideologia e cultura como um culto religioso. O manual de práticas da empresa é igual uma bíblia, seja em tamanho, aparência, diagramação ou linguagem. Os fundadores e presidentes da companhia são retratados como figuras religiosas, especialmente Kier Eagan, que é explicitamente divinizado. Os funcionários mais dedicados têm até altares para Kier; e sua inclusão no culto é tão profunda que eles não necessitam passar pelo processo de ruptura, com o "Lumonismo" sendo o suficiente para garantir total fidelidade e compromisso com a empresa.
Quantas empresas não colocam seus fundadores e presidentes sob pedestais, sempre os representando como gênios ou visionários à serviço da humanidade? Microsoft e Bill Gates, Apple e Steve Jobs, ou num caso em maior evidência (e bem egrégio), Tesla/X-Twitter e Elon Musk. Dizer que algumas dessas figuras têm literais adoradores não é exagero. Similarmente, na página web de qualquer empresa média ou grande veremos seções com algo do tipo "Nossa Missão", que convenientemente nunca é o simples (e verdadeiro) "fazer dinheiro", e sim alguma prosa bonita que tenta enfatizar a pretensa importância social da empresa. E mesmo pequenos negócios parecem querer adotar a cultura de que o trabalho não é apenas um trabalho, quem está lá faz parte de uma "família". Mais uma vez, a série apenas extrapola a realidade, em vez de criar algo completamente fictício ou irreal.
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A tentativa de suicídio de Helly R a princípio parece resultado do ambiente opressor que ela vive, como se ela estivesse desistindo da vida em face da realidade de que nunca conseguiria escapar da Lumon. Mas sua tentativa de suicídio não se deu por desespero. Foi algo friamente calculado, com a intenção específica de afetar não Helly R, e sim Helly Riggs, sua Externa. Foi um ato de revolta, de inconformidade, de rebelião. É bem raro ver o suicídio sendo retratado dessa forma na artes.
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Terminar a série com um cliffhanger, ainda mais aquele cliffhanger, foi uma bela duma falta de sacanagem. Mas isso era esperado. Vivemos numa era em que é impossível fazerem obras completas. Tudo tem que acabar com uns 15 ganchos para dar pano pra 300 continuações e uma infinidade de spin-offs e adaptações.
O que não era esperado (apesar de previsível, considerando o estado atual das coisas) era a greve hollywoodiana de roteiristas e atores. Longe de mim reclamar dela — a causa não é só justa, é mais do que necessária — mas um efeito colateral dela é que uma segunda temporada de Severance vai ou demorar, ou sair uma bosta feita nas coxas. Provavelmente os dois.
Trate teus trabalhadores direito, Hollywood. Ou você acha que vivemos numa distopia capitalista em que as empresas têm controle sobre a existência de seus empr...